« Que os Orixás protegam o Babalorixá OBARAYÍ e o pessoal do terreiro o Ilê Axé Opô Aganju » Pierre Verger – Otum Mogbá, Bahia, 3/01/84(*1)
« A manhã desperta ainda silenciosa. Os filhos de Obatalá seguem para a casa do Orixá para lavar os assentamentos. A roça ainda está cheia. Quem veio para o último domingo das águas já trouxe na bagagem uma outra roupa, dessa vez, bem colorida, afinal essa não é uma segunda-feira qualquer. Há uma expectativa diferente. Enquanto os trabalhos não terminam na casa do « velhinho », timidamente os demais se movimentam com os preparativos. (…)
Rapidamente o cenário se transforma. O branco dá lugar para cores vibrantes, sempre com um toque de vermelho nas saias, nos ojás ou batas. Todos são envolvidos por uma energia que emana alegria, calor, liberdade. São feitas obrigações nos assentamentos da porteira em reverência ao guardião do terreiro e também na casa de Exu, atrás do barracão. Lá fazem-se oferendas para os Exus de todos os filhos. Quem pode traz alguma coisa para agradá-lo. As mulheres, principalmente as filhas de Iansã, preparam um visual diferente. Mãe Bidu, Ivone, Helena se destacam com seus batons vermelhos, saias rodadas e flores na cabeça ».(*2)
« Bira e CiCi, como são conhecidos, eram bem moços. Cada um tinha sua história particular. Ele era de Xangô e ela de Oxum. Coincidências ? Não. « coisa de Orixá ». O Xangô do menino era Ogodô, o mesmo de seu Pedro, Pai de Balbino, e Oxum a sua Ialorixá. O enredo não termina aí. Antes de colocar o barco, era necessário falar com Babá . No Aganju cada Iaô tem que aprender a reverenciar primeiro os ancestrais mais antigos e só depois o seu Orixá. A viagem continua, agora pelas águas.
O destino era o terreiro do Tuntum, no Barro Branco, Ilha de Itaparica. O alabá era seu Roxinho. Junto com Bira e CiCi, foram Eduardo de Ogum, Nininha de Oxaguiã, sobrinha do Babalorixá e hoje Ialaxé do terreiro, Chica também de Oxaguiã. Estava formado o barco, se não fosse seu Pedro. Depois de entregue uma linda ofrenda para Babá Alteorun, uma mudança de planos. O espírito do Pai de Balbino disse o que deveria acontecer. Bira o primogênito e só depois os demais seriam iniciados. E assim se fez !
(…)
Depois da viagem de Bira e CiCi, é dificil calcular quantos filhos já passaram pela porteira vermelha. Quantas vezes se ouviu a pergunta : «Kini orunkó ré iaô » (« Qual é seu nome iaô ? »).
Muitos foram os caminhos que levaram cada filho, no encanto, um sentimento torna todos irmãos, uma família. O mesmo trazido no ônibus Rio – Salvador em 1972 : o desejo pelo Orixá. E mais, de lá ninguém sai órfão de amor, acolhimento, de Pai ».(*3)
« E todo ano é assim. Chega um, outro, e mais um, mais outro. Jogam-se os búzios e lá estão os encantados se comunicando com Pai Balbino, pedindo cuidado e atenção. Ansiosos por ajudar aquele que está perdido, sem direção. E hoje, mesmo sem Pai-de-Santo saber dizer a conta exata de seus filhos, Mãe Rosa já sentido o cansaço da idade, a saudade do babaquequerê Faromi apertando o peito e ebomi CiCi já tendo o banco de Oxalá nos cabelos, nenhum Orixá volta sem ser ouvido e cuidado, sem ser amado como nos tempos de fundação. Mesmo com todas as dificuldades, no Aganju, Xangô terá sempre um oxê para bradar a sua justiça, Ogum receberá sua espada para abrir os caminhos, Exu terá sempre seu padê, Oxum e Yemanjá suas águas para se banhar e todos os eledás e ancestrais terão sempre filhos de corações contritos e um Pai Zeloso ».(*4)
« O meu Pai faleceu, nunca mais a gente poderia ver ele, a não ser quando a gente moresse também. E você sabe que aquela pessoa morreu e o espírito retornou a terra pra vir lhe abençoar e saudar você, e você fazer seus pedidos, e ele lhe dar um bom conselho se você tiver errando as coisas, botando você num bom caminho, isso é bonito, isso é importante ».(*5) ) Balbino Daniel de Paula - Ô Livro : OBARAYÍ, Salvador, BARABÔ, 2009
« Pai Balbino é conhecido por essa tradição e pela sua destreza também nos preceitos no culto a Egum. Ele é sempre convidado para conduzir axexês – ceremonias fúnebres no Candomblé, de pessoas importantes para a religião. Foi assim na morte de Mãe Menininha do Gantois e do obá Kankanfô – um dos mobás do Ilê Axé Opô Afonjá, importante autoridade também no culto aos Egunguns.
Dois assentamentos importantes têm lugar especial no lessén Eguns do Aganju. Um é o de Mãe Senhora, Yalorixá do Babalorixá. Segundo ele, as obrigações para ela foram feitas depois que o espírito da sacerdotisa apareceu para ele em sonho passando pelas dunas da praia de Ipitanga. Um outro Egum é também bastante querido na comunidade. Trata-se do espírito de Pierre FATUMBI Verger. Depois da morte do Amigo, Pai Balbino mandou construir um memorial com coisas representativas dele e de seu Orixá. Mãe CiCi é quem enche as quartinhas, faz a limpeza e zela com todo carinho do lugar. Todos lembram do dia em que Babá OBARAYÍ de Xangô rompeu o silêncio que pairava no baracão e todos os presentes de cabeça baixa puderam ouvir o nome do Egum de FATUMBI : Babá Funladê.
(…)
Dessa forma não é difícil prever. Em ponta de Areia ou no Aganju onde estiver um Daniel de Paula, certamente, ali estará o sentimento e o respeito que torna possivel o reencontro com a vida mesmo após a morte ».(*6)
« Xangô no Novo Mundo : o culto de Xangô é muito popular no Novo Mundo, tanto no Brasil como nas Antilhas. No Recife, seu nome serve mesmo para designar o conjunto de cultos africanos praticados no Estado de Pernambuco. Na Bahia seus fiéis usam colares de contas vermelhas e brancas, como na África. Quarta-feira é o dia da semana consagrado a ele. Assim que Xangô aparece manifestado em um de seus iniciados, as pessoas o saúdam gritando :
« Kawó-Kabiyèsílé » (« Venham ver o Rei descer sobre a terre !! »)
Os tambores bàtá não são conhecidos no Brasil, embora ainda o sejam em Cuba, mas os ritmos batidos para Xangô são os mesmos. São ritmos vivos e guerreiros, chamados tonibobé e alujá, e são acompanhados pelo ruído dos « Xerés », agitados em uníssono.
No decurso de suas danças, Xangô brande orgulhosamente seu « oxé » e assim que a cadência se acelera ele faz o gesto de quem vai pegar num « labá » imaginário, as pedras de raio, e lançá-las sobre a terra. O simbolismo de suas dança deixa, a seguir, aparecer seu lado licencioso e atrevido.
No decorrer de certas festas, Xangô aparece frente à assistência, trazendo sobre a cabeça um « ajerê » contendo fogo e começa a engolir, como na África, mechas de algodão.
Xangô foi sincretizado com São Jerônimo no Brasil e com Santa Bábara em Cuba. Já assinalamos, anteriormente, o caráter estranho de semelhantes escolhas.
O arquétipo de Xangô é aquele das pessoas voluntariosas e enérgicas, altivas e conscientes de sua importância real ou suposta. Das pessoas que podem ser grandes senhores, corteses, mas que não toleram a menor contradição ».(*7)
©Ilê Axé Opô Aganju - Horta Fatumbi Comunidade - @Ogan Fabien
BIBLIOGRAFIA
Balbino Daniel de Paula – Ô Livro : OBARAYÍ, Salvador, BARABÔ, 2009, PP679
(*1) – Balbino Daniel de Paula, idem, PP1 "OBARAYÍ"
(*2) - Balbino Daniel de Paula, idem, PP386 "OBARAYÍ"
(*3) - Balbino Daniel de Paula, idem, PP257-PP258 "OBARAYÍ"
(*4) - Balbino Daniel de Paula, idem, PP261 "OBARAYÍ"
(*5) - Balbino Daniel de Paula, idem, PP555 "OBARAYÍ"
(*6) - Balbino Daniel de Paula, idem, PP538 "OBARAYÍ"
(*7) VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás, deus iorubás na África e no Novo Mundo, Corrupio, 5ª edição, São Paulo, 1999, PP295
« E agora, fundindo-se com a minha comunidade religiosa de pertença, desenraizada da África, tenho a impressão de ter, em comum, a profunda cicatriz do desenraizamento. O modelo de Pierre Verger insidiosamente preenche o vazio que foi esvaziado pela ausência da minha família de sangue brasileiro, ele nunca conseguiu tomar o lugar que deveria na minha vida. Pierre FATUMBI Verger é, de certo modo, um pai simbólico, que serve de elo para me permitir colocar-me na "roça" a que pertenço. Retorna uma certa legitimidade ao lugar que eu ocupo na árvore genealógica, nesta família espiritual, com meu Babalorixá.
E com esse pai simbólico, apesar da distância geográfica, tentei manter os laços que tecera, na esperança de voltar. Hoje concretizo este apego com toda a força da minha nova instalação no Brasil, Salvador de Bahía, que representa o mito da terra prometida, a de um pai, uma terra personificada e materializada por um espaço, tanto físico como simbólico, com o meu Babalorixá Obarayi. e Ilê Axé Opô Aganju. É o catalisador e o meio para desenvolver a verdadeira "cura" da minha identidade (como se a cultura de um indivíduo também tivesse que passar por curando!) Me dando as ferramentas para cultivar meu Orixá ».(*8)
(*8) - Artigo epistemológico do livro de Fabien L., : « La Légende de l’homme aux souliers d’argent », Connaissances & Savoirs, 2021, PP274
AVISO : Por mais informações sobre o acervo fotográfico utilizado neste registro / entrar em contato com Marcinha Regina de Paula (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)